“O bairro é... um bairro. Só lá entra quem lá tem alguma coisa a fazer; o caminho de entrada e saída é o mesmo. As casas são unifamiliares, umas maiores do que outras, mas de qualquer forma parecem pequeninas. Mas são bonitas, vivendinhas térreas, brancas e com cantaria à vista, com um espaço de jardim para cada uma. Cães, gatos, crianças, mulheres nos passeios estreitos e na estradinha que serpenteia labirinticamente bairro acima. Roupa a secar nos jardins e mesmo no passeio, entre duas árvores. Telheiros, garagens, arrumos ou depósitos de lixo foram acrescentados às casas; há jardins cuidados, casas pintadas de cores diferentes, modificadas, e casas velhas, degradadas. Algumas abandonadas.
O carro vai seguindo por entre as casas, virando à esquerda, à direita, sem saber se vai encontrar outro carro ao virar da esquina; sobe-se devagar.
Quase lá em cima, depois de ter passado no coração do bairro, chegamos à ponta superior. Um descampado pequenino, e fragas a ladear a estrada; para o outro lado, o monte começa a descer. Ali o Cabeço, (monte mais alto) é omnipresente, tanto mais que a sua sombra se alonga sobre o bairro a partir do meio da tarde, contrastando com os montes ofuscantes do lado oposto, que no Verão reflectirão o seu calor sobre a aldeia.
O bairro termina em ponta; uma casa um pouco afastada, cercada de anexos de lata, encima o conjunto. Algumas mulheres estão cá fora. Páro o carro, cumprimento, o Grande faz um aceno de cabeça. Abrigamo-nos dos olhares, sentando-nos de costas sobre um rochedo; acendemos dois cigarros, e ele começa a fazer-me uma panorâmica guiando o meu olhar com a mão. O bairro desce aos nossos pés, e o Complexo, gigantesco, ocupa metade do vale; é todo vedado e composto por pavilhões, edifícios antigos e outros um pouco mais recentes, zinco e chaminés altas. Um edifício enorme, mesmo em frente ao bairro, que nunca chegou a ser finalizado; tijolo escavacado, cimento, ausência de telhado. Uma visão de decadência, que o olhares do bairro não conseguem ignorar (no sentido de dar nas vistas, não me parece que os habitantes ainda reparem...). De qualquer forma, nota-se bem que dentro do Complexo há zonas que estão a ser utilizadas e outras totalmente abandonadas. A entrada do Complexo, com cancela e porteiro, fica do lado do bairro (só então compreendi porquê, pois parecia-me ilógico, para quem chega de Mirandela, ter à entrada da aldeia as costas do Complexo). É uma máquina interessante, dois mundos que comunicam, que quase existem um para o outro. Duas bocas que se abrem: saída de um, entrada do outro, conforme o sentido a adoptar; entre os dois, apenas a estrada estreita.
Ao lado do Complexo, a estrada principal passa na parte antiga, com os tascos e cafés, a mercearia, o talho. Não há pelourinho, não há largo, jardim ou bancos. Apesar disso, a estrada alarga-se numa parte, mas é só estrada com pequenos passeios e pessoas sentadas ou em pé à porta dos cafés. De qualquer forma, tenho encontrado muitas vezes uma impressão de deserto ao passar por lá. Um sossego de campo numa paisagem que por momentos diria suburbana.
O Grande fala-me do rio, ao lado esquerdo da aldeia, poluído pelo matadouro, do cheiro nauseabundo no Verão. Agora está melhor, desde que fizeram a estação de tratamento. No Verão os jovens vão para o rio, “por cima” (a montante) do Complexo.
Do lado direito os montes brilhantes. Vejo a estrada de chegada à aldeia, que desaparece nas curvas para Mirandela. À entrada do Cachão há um cruzamento com uma estrada que parte para o lado direito. Algumas casas a ladeiam. O Grande diz-me que é o caminho do cemitério e da barragem. Vão para lá pescar, fazer festas à noite – pescar, na barragem, festas nos dois.
A aldeia parece então composta por três zonas demarcadas: o bairro dos trabalhadores (Vila Nordeste), o Complexo, o Cachão Velho.
Vamos até ao campo de futebol. O campo também fica num dos extremos superiores do bairro, com um muro alto a separá-lo das casas e de alguns descampados. Sente-se também alguma ruína. Entramos e subimos para as bancadas de cimento e tijolos escavacados. Um buraco no meio indica a entrada para os balneários.
O campo parece repartido pacificamente por vários grupos. Os mais velhos ficavam com o meio do campo, jogando entre duas balizas pequenas. Numa das balizas de um extremo um grupo de gaiatos. Por aqui e por ali mais gaiatos, no campo e nas bancadas. Fico um pouco a vê-los, e a conversar com o Grande. Aquele é um lugar muito importante, de reunião dos homens e rapazes; também raparigas e mulheres, que por vezes vão dar uns pontapés. Ouvi vários relatos de um jogo de casadas contra solteiras, realizado há pouco tempo.
A sombra do cabeço arrepia-me; as bancadas já perderam o calor. Vou embora e despeço-me com um aceno. Serpenteio até Mirandela, com a cabeça cheia de sol, de ideias e de cansaço" (Diário de Campo, 2000).
In:
Barbeiro, A. (2003). Eles, nós e eu, aventuras juvenis: estudo qualitativo sobre a transgressão na adolescência. Dissertação de Mestrado em Psicologia, com Especialização em Psicologia da Justiça. Braga: Instituto de Educação e Psicologia – Universidade do Minho. (pp. 192-194).
(O meu agradecimento ao Grande, pela sua visita guiada, e a todos os que participaram nesta trabalho!)
domingo, 13 de janeiro de 2008
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário